terça-feira, 8 de abril de 2008

A tradição cumpre-se e o povo sobe à serra...

Hoje, deambulei por esta terra que me adoptou ou que eu adoptei – sei lá bem os contornos legais!-, perdida por aí pelos cantos e recantos, ruas e becos –acredito que até desconhecidos, para a maioria dos naturais!-.

Andei, por aqui e por ali, sem fazer nada senão que olhar e absorver os pormenores e captar detalhes que registo em imagem.


Por momentos, volto atrás na história, e regresso aos meus tempos de criança e jovem, solta e livre nas férias mesmo grandes, em casa dos meus avós paternos. O cheiro a calor, ao doce abandono dos dias, sem nada de penoso para fazer, só brincar e perder-me com os amigos pelos pinhais e imaginar e encenar as aventuras que líamos nos livros d’Os Cinco.

Vogando, sem sentido, por estas ruelas sinto que a Lousã, a velha Lousã, já não existe… as casas do antigo casco estão definitivamente perdidas, à mercê do abandono e da futura derrocada. Que histórias tristes encerram? A nova Lousã emerge no meio do casario mais tradicional e característico e perde, aos poucos, a sua identidade. Que pena! Que linda deveria ser a vila de outrora, airosa e encantadora sob este mesmo sol escaldante. Agora, olho em redor e vejo grande parte destes velhos testemunhos à venda. Parece-me que toda a Lousã está mais ou menos à venda… que falhou na sua história, onde se perdeu o rumo?

Continuo. Olho por sobre os muros e descubro as cores das árvores ainda em flor, a luz intensa nas terras ainda cultivadas e esqueço as paredes velhas e em decadência. Paro um pouco para descansar no grande espaço que foi antigamente a Quinta do Palácio. Estranho, uma vez mais, os pilares brancos que o circundam… avanço pelo Penedo e cumprimento um polícia que me olha estranhamente para a máquina fotográfica. “Os polícias estranham sempre as máquinas fotográficas!” que os episódios do meu historial assim o comprovam.

Deambulo perdida, mas com o coração a encher-se de sol… de tanto sol, de calor… de tanto calor, de esperança… de tanta esperança… sensações que cobrem a escuridão dos pensamentos da noite anterior.

Umas Senhoras sentadas no banco do largo, velhas amigas certamente em troca de confidências, pedem-me que as fotografe... prometo deixar-lhes uma impressão na sapataria da esquina! Recordam-me que -hoje- é a primeira das procissões da Santa Padroeira, a Nossa Senhora da Piedade e subo, a pé, o caminho da Serra, já com um sentido para os meus passos. Bebo água, tento respirar compassadamente… inspiro, pelo nariz… expiro, pela boca…
É de facto dia de festa e romaria… o número de viaturas, de polícias, de pessoas caminhando, é intenso.
Passo pelos músicos da filarmónica que se acotovelam em torno do seu maestro e ajeitam os instrumentos que terão de tocar – se possível, com afinação- e de carregar, serra acima. Uns heróis! E paro no caminho "para ver a banda passar..."



Tenho o passo rápido e ultrapasso suados romeiros nas suas fatiotas domingueiras, muitos a pensar porque raio tiveram a ideia de estrearem os sapatos nesse dia…
A Lousã, pelo menos uma vez no ano, sobe ao Burgo e venera a sua Santa devota. Há gente de todo o género e é uma delícia observar este povo serrano, nas suas semelhanças, nas suas diferenças. É este o povo português – pelo menos uma parte do bom povo português- que a outra parte… Não posso deixar de me recordar do fim-de-semana anterior passado no Porto a assistir, em Serralves, a um bailado de dança moderna de uma companhia de Nova Iorque… uma delícia pela diferença, pela ousadia. Nessa altura, senti-me assim um pouco como provinciana, perante o zoológico de espécies urbanas que me circundavam. Hoje, comparo a simplicidade destes romeiros com a elite intelectual de espectadores e penso que, apesar do abismo que os separa, ambos os grupos são convictos às suas devoções. Nunca tinha visto tamanha animação no Castelo e em seu redor as “empresárias-do-ramo-de-aluguer-de-fatos-d’anjo” afadigam-se tentando atrair clientes para os seus veludos toscos e flores de plástico e, simultaneamente, vestindo as crianças desajeitadas. “-Que santinho queres ser, meu menino? Olha aqui este, tem três chavinhas… uma é a do carro, a outra é a da casa e esta, meu menino, é a do Céu”. Perante tal sábia doutrina cristã recordo-me de outra procissão, longínqua nos meus por volta de 11 anos e em que, cumprindo a vontade da minha avó materna quase após o meu regresso definitivo de África, desfilei pelas ruas empedradas da aldeia. “-Qual o fato mais lindo que os Senhores alugam?” – perguntava a minha mãe na mais reputada casa do lugar.
“-Temos aqui um de Rainha Santa que é um luxo!”
Pois, tinha de ser esse então… o mais quente, com vestido em tafetá azul claro e dois mantos, logo dois e para quê?, um azul-escuro e outro em vermelho-sangue e rosas e coroa e sapatos brancos a estrear. 
Em pleno Agosto, mais de quatro quilómetros de procissão, à hora do almoço logo após a missa e eu, esbafurida, bolhas nos pés, os mantos atirados sem decoro para trás das costas, a coroa a badalar nas mãos e as rosas lançadas displicentemente para o primo que seguia ao lado. “- A tua filha não tem modos, Lena!” – dizia a Avó para a Mãe e eu, farta daquilo tudo, que não me dizia grande coisa e só tinha tido graça, ao princípio. Volto à Lousã!
Que romaria esta! Com fé de pés descalços e crianças de colo ao colo e tecnologias actuais de máquinas fotográficas e telemóveis a servir de rádio para amenizar o tédio da demora das horas que não passam ou para entreter com um joguito os miúdos já enfarpelados. Chegam as autoridades! As que são… as que foram… as que virão, porventura, a ser!
É verdadeiramente interessante este “romarejar”…
Fico junto ao Castelo… falta-me a coragem suficiente para descer a ladeira e subir até à Ermida para, logo após e de novo, descer a escadaria e trepar a rua íngreme.
Não sou porém a única!
O primeiro morteiro assusta-me… estava concentrada a fotografar. O estrondo é intenso. Há que informar o povo que se deu início à caminhada.
Mesmo à minha frente, as capelinhas recebem o sol de meio de tarde e resplandecem no meio da natureza. Acima, a aldeia de xisto camufla-se na natureza e mais ao longe, ainda, as eólicas surgem na paisagem como os seus mais recentes elementos. Como os tempos, e os homens, transformam as paisagens! A fanfarra afina os instrumentos e às cinco, quase certas, a imagem da Santa sai da capela e a procissão forma-se. “- Já aqui venho há cinquenta anos, Menina (“eu!”)… os meus filhos até aos doze anos foram sempre de anjinhos na procissão. É uma fé que eu tenho!” A ala das opas vermelhas perfila-se… de seguida, juntam-se os devotos com capas roxas… à frente, o estandarte parece uma grande vela de veleiro, ao vento, vogando sobre os oceanos de fé destas gentes. E, apesar de não ser romeira –na sua verdadeira essência e acepção - sinto-me daqui!
Capto as imagens da procissão a formar-se e a subir afoita a íngreme estradita e parto à sua frente.




O som da banda filarmónica acompanha-me os passos de regresso à vila. Já no Centro, o cheiro adocicado de pipocas e de algodão doce enche-me de uma nostalgia boa e doce, também.

Já dorida dos pés e da intensidade da tarde, regresso a casa e recordo o dia.

Autoria e Agradecimento

Todos os textos e imagens são de autoria de Ana Souto de Matos.

Todos os direitos estão reservados.

São excepção as fotografias do Feto Real e do Cardo que foram cedidas pelo João Viola e 2 imagens captadas na Net sem identificação de autor.