sábado, 31 de julho de 2010

Magnolia

Há mais de uma década, prometi a mim própria que nunca mais veria um único filme junto de alguém que troçasse de mim por eventuais lágrimas e emotividades provocadas pelo seu conteúdo. Cumpri à risca!
Fui, pois, acumulando filmes como se coleccionam livros, aguardando o momento oportuno ou a companhia adequada para a sua "leitura"...
Talvez por isso, só hoje, vi Magnólia... Sozinha! E aos pedaços pequenos porque, no seu realismo de mostrar as loucuras dos banais quotidianos de pessoas ao acaso, das suas vidas, da própria Vida, demonstra que o acaso nunca é acaso e que as coincidências só ocorrem porque concorrem para algo determinado e confusamente com sentido. E por todas essas questões me serem tão próximas, chorei, sem ninguém ao lado para me confortar mas no conforto, contudo, de não sentir a troça alheia pelas minhas lágrimas.

http://www.youtube.com/watch?v=hAWDEsgMahQ&feature=related

segunda-feira, 12 de julho de 2010

a gente…

O cheiro… a luz… a gente… a gente! o terceiro elemento nesta viagem de sentidos com sentido…gente que senti afável, boa. Minha!

E não me venham dizer que é apenas do meu jeito de olhar… não apenas… as pessoas em Maputo são boas pessoas no seu todo… têm expressão fácil, sorriso fácil, palavra fácil e, contudo, como estão presos a quotidianos difíceis.

Deambulei pelas ruas, pelas avenidas, pelos lugares de comércio (afinal todo e qualquer lugar é de comércio), pelos monumentos, um pouco por todo lado, sempre deslumbrada pelas gentes que me circundavam e me olhavam com a curiosidade natural de verem uma mulher branca calmamente a andar por ali, a olhar em redor, a apreciar, a falar sem receio.

Tanta gente que fixei. Porém é pelo sorriso de Bega que começo. Um sorriso puro e genuíno de mulher muito jovem, feliz de lhe gabar a arte de tecer com feijão verde a banca tosca de legumes dispostos num saco branco de substracto aberto ao meio à laia de esteira, numa das entradas do Bazar de Maputo. Um sorriso tão cheio de confiança nas minhas palavras, no meu “volto já e levo qualquer coisa, vou só trocar meticais”, no meu elogio sincero sobre a sua beleza e o seu cuidado e esmero na disposição das couves e dos limões.


Fiquei por ali, por largos minutos, à entrada do Bazar a falar com Bega… a perguntar-lhe a idade, o que fazia para além de vender legumes, o que pensava, a enaltecer-lhe o jeito de “bordadeira”. Prometi regressar rapidamente para lhe comprar cenouras, o único legume que poderia apreciar em quarto de hotel à laia de fruta. Escolhi duas belas e pujantes cenouras em troca dos 15 meticais que me custaria um quilo. Nunca senti tanto agradecimento no olhar e nas palavras por conta de coisa nenhuma.

O sorriso de Bega ficou registado na minha máquina fotográfica e o adocicado das cenouras de Bega por muito tempo no meu registo de paladares especiais.

Propriedade Privada!

Muito a propósito partilhei imagens e sentires com amigo distante nos dias, mas próximo do coração e com o qual tenho em comunhão esse sentido de África, pela naturalidade que nos é comum.

Em troca, recebi uma história ‘deliciosa’ [parafraseando alguém que também e desde sempre nos foi comum em sentires].

Não me contendo, pedi-lhe autorização para a publicar neste espaço, também ele, de sentires.

Aqui vai, para vós…
««Olá minha ‘belamiga’
Vou-te contar uma história verdadeira e no mínimo invulgar.

Conheces a Namaacha e portanto sabes que logo, logo, à entrada da vila, vindos de Maputo por Umbeluzi -esta é só para ti que conheces a terra - se desejares ir à cascata, (percebi por ti que está um bocado seca, mas não esqueço os enormes bambus e o ‘craq, craq’ que fazem ao roçar uns nos outros, com o vento) viras logo à tua direita... Nessa estrada há do lado esquerdo uma série de casas muito boas e bonitas que a classe média colonial tinha construído para os seus fins-de-semana na chamada Sintra de Moçambique.


Quando lá estive, o programa em que trabalhávamos ficou com uma dessas casas que estava abandonada e que era de facto muito bonita. Recuperámos a casa e nela ficou a viver um colega mais a sua mulher. Já tinha reparado que, a ladear o portão de entrada das casas, existiam duas enormes casuarinas e, na da direita mas muito alto, estava fixada uma chapinha branca esmaltada com um debrum azul com uma qualquer coisa escrita numa língua incompreensível! Estranhei e sempre que lá ia olhava para a dita chapa esmaltada.
Num qualquer sábado em que estávamos a preparar o almoço, ao mesmo tempo que capinávamos o que fora um jardim, reparei que se encontrava à porta uma senhora branca, muito elegante e seguramente com mais de 65 anos. Era, claramente uma pessoa idosa que olhava para dentro com uma curiosidade muito intensa...

Não resisti, larguei o que estava a fazer e fui até ao portão, cumprimentei-a e perguntei-lhe se desejava alguma coisa.

A resposta foi brutal:
- Esta casa é minha!

Antevendo grande borrasca, ainda balbuciei que não tinha percebido o que estava a dizer, mas chamei logo o meu colega. Afinal, era ele que vivia na casa!
Era uma mulher idosa, magra, não portuguesa, suave, muito suave e delicada e, também, muito firme.

Ficámos à conversa junto ao portão. Recusou todos os convites para entrar, conversou sobre a orientação da casa, dos quartos, da cave, do jardim e do galinheiro e, sobretudo, o que ela (holandesa) e o seu marido italiano tinham posto de si, em amor e expectativas nessa casa que foram construindo ao longo de 10 anos e como tinham sonhado aí passar a sua velhice...

Explicou-nos que tinham ido para Moçambique e por lá tinham passado toda uma vida, criado e educado os seus 2 filhos e que em 1975, tal como muitos outros, se tinham ido embora para Itália, onde ainda viviam. O filho tinha terminado o curso e fora também ele para Moçambique como cooperante, tendo-se enamorado e casado com uma moçambicana. Era viúva, tinha vindo ao casamento do filho, e depois de muita hesitação, acabara por não resistir. Tinha vindo à Namaacha ver a sua casa. Continuou terminantemente a recusar-se a entrar (como é fácil compreendê-la!) mas foi repetindo que estava muito contente por ver a sua casa bem tratada e a conversa foi assim decorrendo, suave e impressionante.

Despediu-se, sem entrar, e não resisti e perguntar-lhe se saberia dizer-me o que estava escrito na tal placa esmaltada pregada na casuarina.


Olhou, espantou-se coma altura a que a mesma se encontrava, comentando que o marido a tinha colocado à altura dos olhos, na época.

Sorriu...sorriu com espanto e ironia e respondeu-me:
“- Propriedade privada em holandês”.»»

Li e reli a história partilhada pelo Pedro (Dornellas, pois é dele a sua autoria) e não resisti a devolver-lhe o meu sentimento perante a minha própria casa, que deixei para trás em criança…

««que história linda, Pedro...
eu também encontrei a minha casa... encontrei-a em 7 minutos mal contados a partir do hotel. Ninguém me explicou a sua localização e, embora a toponímia das ruas tenha sido alterada, eu não tive qualquer dúvida. Recordo-te que saí de Moçambique com pouco mais de 9 anos de idade…

Estava, pois, apreensiva. Se a encontrasse ‘escaqueirada’ pelo tempo ou sobretudo pelo vandalismo ficaria de rastos, isso era certo.
Contudo, estava toda arranjada, parecia até uma casa de construção recente e não com perto de meia década, protegida por muros e gradeamentos eléctricos. Do que apurei, parece que vive lá uma importante figura local.

Fiquei do lado de fora a olhar o segurança que circulava para trás e para a frente e o jardineiro que andava também por ali a arranjar o jardim e a pensar – a sentir!- que a preferia assim arranjada e bonita e que me sentia feliz de a ver utilizada por terceiros, um espaço de vida e acolhimento para outros...

Depois, recordei-me do seu interior, do meu quarto e da sala de brinquedos, das salas amplas onde via a minha ama cor-de-chocolate a dançar a marrabenta, o varadim onde lanchava chá-muito-preto e pão-frito e onde brincava e fazia os trabalhos de casa na mobília alentejana em miniatura, azul com flores coloridas, da palmeira torta que me deixava subir no seu dorso até quase lhe tocar as folhas, das mangueiras que ladeavam o quintal e que já não existem, dos meus cachorros, nascidos no mesmo dia que eu... fiquei por ali a sonhar...

E, sabes, já passaram quase dois meses e ainda não caí em mim. Absorvo, aos golinhos pequenos, as sensações vividas então e que têm de dar para me encher o coração por muito tempo…

O ‘Butcha’ taxista, insistiu em tirar-me fotos junto ao portão. Acedi, um pouco nervosa. Fiz bem, contudo. Posteriormente, a minha mãe bebeu avidamente essas imagens.

Não pedi para entrar... afinal era "propriedade privada" e não teria qualquer lógica, não é?»»

Autoria e Agradecimento

Todos os textos e imagens são de autoria de Ana Souto de Matos.

Todos os direitos estão reservados.

São excepção as fotografias do Feto Real e do Cardo que foram cedidas pelo João Viola e 2 imagens captadas na Net sem identificação de autor.