domingo, 20 de junho de 2010

a luz...

A vida começa cedo em África...
Aos primeiros raios de luz, os pássaros despertam, as gentes despertam, eu desperto... começa a vida!
Aos primeiros raios de luz, lá pelas cinco e pouco a comunidade já densa de muçulmanos  louvam na mesquita ao seu Deus, posicionados a Meca e as suas ladaínhas entram em catadupas pelas janelas escancaradas do meu quarto de hotel...
Dormi de janelas abertas... a temperatura, pela noite, não passou a fronteira dos 19 graus e o calor e a humidade do ar ajudaram-me a respirar melhor, esquecendo bronquites-de-velhos-continentes.
Do 12º. andar do hotel com vista sobre a cidade... a cor é outra, agora. Já não é apenas o cheiro que me conquista as narinas. É a luz que me cativa o olhar. E com a luz, impera o branco da Catedral, das escadarias, dos prédios mais além. Uma luz clara de manhã quase límpida.
Permanece a sensação de pertença.
Flutuo por ali, por sobre o casario que ainda reconheço-quase-de-cor... o jardim... o prédio onde se situava a empresa e os estúdios dos meus pais, o outro, da Cooperativa onde eu, ao lanche, invariavelmente bebia leite frio com torradas e onde comi os primeiros iogurtes, frescos, do dia, amargos de nascença, adoçados aos quilos com açucar-de-cana... o edifício do Rádio Clube de Moçambique... o da Câmara Municipal, a antiga Praça Mouzinho de Albuquerque...
Sensações tão nítidas de um passado distante, tornadas certezas vívidas e actuais.
A vida começa cedo em África... aos poucos, a cidade desperta num alvoroço incontrolável... começa o corropio do trânsito, as buzinas, o burburinho das gentes, os sons do porto mais ao fundo e da estação dos caminhos-de-ferro...
Também eu desperto cedo com a luz a jorros e parto cedo à redescoberta da minha cidade... pouco passa das sete, sózinha pelas ruas, mas tão cheia de luz e de sentido que não tenho capacidade para ser mais feliz nesse momento.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

o cheiro...

quando cheguei, o que me impressionou foi o cheiro...
depois de 10 horas a respirar o ar pressurizado do grande pássaro, a intensidade da terra molhada de chuva a entrar-me pelo nariz, pelos poros...
o cheiro mais profundo das minhas raízes, presas naquele chão molhado...
o cheiro de África...
um odor quente a envolver-me sem me sufocar
a fazer-me sentir que trinta e alguns anos depois aquela ainda era minha terra, para além de uma mera e quase etérea evocação no meu bilhete de identidade...
da varanda do meu quarto debruçada sobre a Sé, por longos e eternos minutos contemplei a minha cidade...
tantas décadas à procura do que sou, de quem sou... e ali, naquele momento, a certeza de pertença ao espaço e ao tempo.

vou mais além... talvez!

fazer-de-conta deixou de ser válido
abro as janelas... escancaro-as...
e fico por aqui, apenas a encher os pulmões do ar puro da serra ou
vou por aí, percorrendo continentes à procura das verdadeiras raízes.
corro por ali, àvida da vida que não sei viver ainda
ou finco os pés neste solo que é meu, por vezes.
fazer-de-conta deixou de fazer sentido
não quero fazer-de-conta.
quero ser!
vou mais além... talvez!

Autoria e Agradecimento

Todos os textos e imagens são de autoria de Ana Souto de Matos.

Todos os direitos estão reservados.

São excepção as fotografias do Feto Real e do Cardo que foram cedidas pelo João Viola e 2 imagens captadas na Net sem identificação de autor.