terça-feira, 28 de outubro de 2008

aparentemente...

O fruto mais extraordinário
que alguma vez observei, senti, apreciei,
encontrei-o numa chácara do interior do Brasil,
no cimo de um morro onde a humidade e a frescura lhe permitiu amadurecer tranquilamente…

a jaca…
um fruto aparentemente agreste ao tacto…
um fruto que se resguarda na sua casca, aparentemente rígida…
um fruto fechado em si próprio, aparentemente

aparentemente!
e...

como se abre a jaca,
com uma facilidade quase extraordinária
perante quem tem coragem para a desvendar e
não se assusta ao primeiro olhar com a sua altiva distância e rudez
e...

como se transforma a jaca,
com uma simplicidade desconcertante perante quem deseja conhecer o seu sabor suave
e toda a doçura em si contida…


comparo-te a uma jaca!

assumo! não estava, de todo! preparada para ti.
e, num repente, fazes parte da minha fruteira!

para a Carla, com um beijo de parabéns! 28.10.2008

sábado, 18 de outubro de 2008

Há lágrimas que são belas!

-Testemunho de um casamento ainda com ténues contornos
de uma certa ruralidade de antanho…-

O convite por ali permaneceu 3 ou 4 meses, fixando a data do enlace. Uma pequena garrafa com uma mensagem dentro, assim como à laia de “perdida-e-achada”, um convite original com a praia toda dentro, a fazer alarde aos sons do mar e ao cheiro da maresia.

Ainda era manhã desse dia tão aguardado e a noiva surgia perante mim com o rosto fino, miúdo, translúcido de cansaço e emoção. O cabelo já arranjado pela cabeleireira do lugar, com mesclas e jeitos ondulados das últimas modas importadas das cidades.
-“Está bonito? Gostas?”, a ansiedade na voz e a expectativa de uma resposta afirmativa.
-“Sim, está bonito! Sim, estás bonita!”
Ela por inteiro está bonita, radiosa com o seu cabelo e olhos claros a reflectirem todo o brilho interior.
Neste dia, sente-se princesa, sente-se heroína de livro romântico, sente-se personagem principal. Está radiante no cumprimento da sua história de sonho, de paixão e de amor.

Apesar da família quase ali ao lado a paredes-meias e dos amigos sempre dispostos a tudo, sente que está sozinha nestes seus derradeiros momentos de condição de jovem solteira. No seu coração apenas o desejo de ter junto de si a mãe e de se aconchegar no seu farto peito, de receber o carinho infinito e o conselho sábio. Na impossibilidade de tal, a jovem sente-se naturalmente um pouco só e desamparada.
Assumo o privilégio de garantir o papel de a acompanhar nestes momentos… de lhe ajeitar os acessórios, de lhe apertar os 24 minúsculos botões das casas acanhadas do seu vestido, de lhe ouvir algumas confissões e, por fim, de lhe captar o sorriso de jovem noiva, registando-o para a posteridade dos álbuns.

Depois, é a vez do rebuliço das amigas, que surgem já ataviadas e janotas.
Sinto sobre mim um ou outro olhar de soslaio e uma pitada de ciúme natural e incontido, tentando descortinar qual o meu papel no acto. Resguardo-me na minha tarefa e deixo-as assumir o seu estatuto de sempre e, são elas que retocam a noiva e a ajudam nos últimos detalhes.
É extremamente belo captar as imagens de ternura e de nervosismo partilhado, de amizade fundamentada em anos de vivências e significados comuns.

Os presentes expostos na sala ali estão à vista de todos, identificados com os nomes dos ofertantes, uma espécie de «quem-deu-o-quê».
Por estas paragens não é insólito, uma vizinha oferecer um porco aos noivos. E não é apenas o porco em si… são os cuidados ao longo dos meses para o fazer crescer robusto e saudável, é a comida e a matança e o corte e a limpeza das carnes do animal que irão encher a despensa dos noivos durante uns bons pares de meses. Grande prenda esta para um casal em início de vida, impensável noutro lugar que não a aldeia.

Já preparada, a noiva sempre na companhia das suas amigas mais íntimas, presta homenagem à mãe, falecida recentemente. Uma manifestação singela de todo o amor e de toda a saudade.

E do cemitério até à igreja, por mais de um quilómetro, o caminho é percorrido a pé com a algazarra jovial, os últimos comentários pueris, os acenos aos vizinhos que acorrem às janelas e varandas, as “felicidades” dos cumprimentos, os telemóveis enquanto arautos das novidades “…o noivo já cá está…”

Três da tarde em ponto.
O sol outonal aquece a pele desnuda. O cheiro das ramadas e ervas colhidas é intenso na passadeira verde que a noiva percorre até à escadaria da igreja, à laia e jeito das procissões. É um trajecto solitário mas com passo mais firme.
A jovem noiva está decidida a iniciar uma nova e emocionante fase da sua vida.

Afoita, sobre os degraus, dá os últimos abraços.
Os meninos das alianças atrasam-se e é preciso aguardar a sua chegada e conferir que tudo está no lugar.
A simbologia do mar e da praia está presente em todos os pormenores.

De braço dado, bem firme no do pai, a jovem entra no templo frugal de ícones.
Com laivos de modernidade é acolhida por uma música inglesa que o noivo escolheu para a receber…
«Ela, pode ser a razão pela qual sobrevivo… Ela, é o porquê de eu estar vivo… O sentido da minha vida é ela….».


O noivo aguarda-a e a cerimónia decorre, simples e emotiva. As referências ao amor, à saudade, à amizade, ao afecto são uma constante e manifestam-se em diferentes momentos da celebração. As leituras bíblicas proferidas pelas companheiras, os cânticos juvenis, cantados e tocados pelos colegas de grupo paroquial, a oferenda da ‘coberta da felicidade’ confeccionada pelos amigos, a evocação e recordação dos entes queridos conferem à cerimónia um profundo e sentido significado.

E, o jovem padre é oportuno na sua homilia quando profere: “Há lágrimas que são belas!”.

O tempo decorre lento mas sem impaciência. Existe um sentido de felicidade comum que paira no ambiente, uma certeza de que é ali que todos devem estar, para testemunharem este rito simbólico de início comprometido de uma vida a dois.
Os sinos repicam anunciando o enlace.

O arroz confunde-se com as pétalas, entranhando-se nas roupas e nos cabelos.

Cá fora, mais surpresas e oferendas ao jovem casal. As felicitações chovem, os abraços, os beijos. O povo do lugar reúne-se no adro da igreja para participar do momento e saudar à felicidade.
No jardim, é o tempo dos registos para a posteridade junto aos grasnidos de patos ciosos do seu espaço, sobre a fofa relva verde, pejada de minúsculos cogumelos.


E tempo também para o corte do bolo dos noivos que surge providencial para os estômagos já ávidos de festa.
As orlas claras do vestido salpicam-se da terra negra.
É, tempo ainda, para a plantação a dois de uma árvore, simbolismo de um amor sustentado e sustentável.

A festarola é o momento seguinte…
a comida, a música, as cantorias, o bailarico, os comentários jocosos, os excessos…
Lentamente, o porco assa no espeto.
As jovens trocam os saltos altos por cómodas chinelas.
Afoitos, os casais tomam posição no salão para as horas de rodopio e os jovens solteiros lançam olhares namoradeiros e de cobiça.
Canta-se o fado, batem-se palmas, beijam-se os noivos partilhando-se com os convivas. Falam-se trivialidades, trocam-se confidências, simulam-se bocejos, dão-se opiniões sobre as últimas do lugar, do país e do mundo.

Entre música ligeira, pop e de arraial o que importa é a animação e agradar aos convidados, habituados a estas andanças festivas.
-“Gostaram? Correu bem?”
Por fim, a oferenda das amêndoas, daquelas confeccionadas apenas em açúcar, reboludas, que se derretem na boca e fazem mal aos dentes mas adoçam o coração.


E, a noiva, esquecida da ansiedade do princípio do dia, sonha já com o momento seguinte enleada nos braços do seu noivo!


quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Confiança

"O que é bonito neste mundo, e anima,
É ver que na víndima
De cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura..."

a partir de poema de Miguel Torga de 1950

Autoria e Agradecimento

Todos os textos e imagens são de autoria de Ana Souto de Matos.

Todos os direitos estão reservados.

São excepção as fotografias do Feto Real e do Cardo que foram cedidas pelo João Viola e 2 imagens captadas na Net sem identificação de autor.