«Ontem à noite, da janela observei a esquina do meu quarteirão. Um redemoinho de luz formado pela água da chuva em dança voluptuosa.
Os movimentos giratórios criavam imagens sobre a calçada e o
asfalto, sob a luz branca e crua dos candeeiros públicos.
Fixando os olhos com maior precisão, entendi que os seres
formados pelo vento das copiosas gotas de água, compactados nos feixes de luz
nua e branca, libertavam sons que tanto podiam ser de êxtase e comunhão quanto
de sofrimento e dor. Uns, esganiçavam-se em cânticos, outros numa espécie de
urros ou gemidos, num qualquer linguajar incompreensível.
Da janela, não me conseguia aperceber se tratavam de seres
assexuados ou de género bem definido.
Do esforço, os olhos latejavam de ardor com o esforço de
captação da imagem e, simultaneamente, de compreensão do conteúdo.
As espirais criavam histórias entre si, histórias de
envolvimento e lutas; composições de beleza e fealdade; cenários de intensidade
e marasmo.
Ali, à minha frente, desfilavam os meus temores e os meus
sonhos numa dança de sensualidade e de ousadia; de regressão e medo; de
catarse. Passos à frente, passos atrás, o vento a forçar-lhes as ancas
inexistentes, os braços idealizados, as cabeças de corpos meramente imaginados,
rodopiando e forçando os feixes de luz...