segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Tenho uma prima em África…

Este texto poderia começar por…“tenho uma prima em África…”, mas isso não seria suficientemente elucidativo do porquê de o escrever…

Porventura, no final, continuará com uma certa obscuridade o motivo da sua redacção, assim como pouco clara a longa história que está por detrás e conta já, com longos quarenta e três anos de vida.

Este texto deveria ser capaz de transmitir mais do que simples palavras ou ideias ou sentimentos…
deveria ter a capacidade de se metamorfosear, por exemplo…
em cheiros, aromas quentes, daqueles que entram e enchem todos os sentidos…
em sensações na pele, de brisas cálidas e águas tépidas, de texturas selvagens e agrestes…
em sabores, paladares inebriantes, fortes, picantes…
este texto deveria ter a capacidade de saber transmitir os sons das batucadas ao fim da noite a evocar espíritos e demónios e a afastar desgraças…

I had a farm in Africa…” palavras iniciais de um livro que resultou num filme magistral interpretado por magistrais artistas…
às vezes, costumo proferi-las baixinho… porquê? sei lá bem porquê…
–o som agrada-me e conforta-me…
“I had a farm in Africa”-…
Um som que me recorda a mão cheia –vazia?- de recordações que tenho dos poucos mais de nove anos em que lá nasci e vivi.
Apenas e quase só isso!

Sim… este texto deveria saber transmitir toda a minha África nas palavras…
aquela que permaneceu encerrada em mim, incólume, estranha, indecifrável…
…e não aquela que se traduz na prática, tão somente, nas recordações de objectos acumulados –às vezes apenas de pó- na prateleira central da estante da sala, assim à laia de altar ou santuário a umas raízes perdidas. É estranho, mas parece que tenho, que cabe, toda a África na estante da minha sala…


E apercebo-me nitidamente que não sei medir a dimensão da minha África para além disto. Não sei sequer definir o seu grau de importância.

E afinal, é nessa África tão longínqua, a que nunca mais retornei mais uma vez sabe-se lá bem porquê -as viagens são caras, o tempo é curto, a criança é ainda pequena, agora não dá por causa da escola, depois por causa do trabalho, da falta de disposição, do dinheiro, sabe-se lá bem porquê!- que se encontra a minha justificação de ser… o início de todos os inícios daquela mistura mais ou menos incompreensível que sou eu… o princípio e quem sabe? o fim de tudo.

Sinto o aperto das ideias… fará qualquer sentido o círculo?

Já sou portuguesa há tempo demais! A revolução que me trouxe ficou perdida lá bem atrás no tempo, recordam-se dela?

Alguma vez terei sido africana?
A alvura excessiva da minha pele quase me faz duvidar disso…
A África é negra! A África é pele tisnada pelo sol insuportável de quente. Figurativamente, o meu sangue não deveria ser apenas vermelho, deveria ter laivos de preto e das cores intensas do mato.
Fará sentido questionar?
Ou é uma mera casualidade espaço temporal que define a minha naturalidade no BI?
Naturalidade-de-fulana-de-tal:Moçambique… assim tão somente.


Acredito, porém, para além de todas as interrogações e questionamentos retorcidos, que é exactamente essa característica de nascimento que define tudo o que sou e que assumo hoje!

Ao longo de todos estes anos a ligação com essa outra África, aquela que permaneceu distante de mim, foi mantida através de família…
tios e dúzias de primos –uma expressão!- de todos os graus e idades…
família próxima de sangue, mas na maior parte dos casos longínqua de laços…
Dessa família, ligações breves, efémeras até, que a larga distância não ajudou a consolidar.
“Os primos de África”… sujeitos quase etéreos, materializados em encontros fugazes aqui e ali perdidos nos anos ou
em presentes étnicos que pontualmente chegam em forma de capulanas ou bustos de madeiras exóticas e cheirosas…



M
uito de quando em vez, quase a medo, retribuo à minha moda essas ofertas…
- afinal quais são os gostos? os valores? os estares? os sentires?-.

Porém, a vida é um lugar estranho e, por vezes não vezes demais, tem a capacidade de nos surpreender…

Elos surgem através das palavras…e, incrivelmente, percorrem doze mil e tal quilómetros, num ápice. Portugal e Moçambique tornam-se mais próximos, quase um-aqui-ali consentido pelas tecnologias de bytes e satélites.

Lá longe, uma prima lê-me, compreende-me e sente o que expresso como seu, como se só para si fossem as minhas palavras.

E descubro, que é também para ela que escrevo…
que me tento descobrir e redescobrir no seio das minhas tortuosidades.

Uma troca, uma partilha
–quase carinhosa, fará isto sentido?-
que me surpreende…
que a conforta e me conforta!

E mais do que nunca sinto esse apelo das raízes…
– as outras… as do primeiro início!-
e sinto que se criam elos de empatia, tornando a distância e os sentimentos próximos.

Obrigada Guida!
Hoje, são só para ti as minhas palavras.


1 comentário:

  1. Ana:

    Um beijinho da Maria da Paz e do Joaquim Jorge, que (re)percorreram este seu espaço tão carregado de cúmplices afectos e de formosíssima poesia.

    MP, JJC

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Autoria e Agradecimento

Todos os textos e imagens são de autoria de Ana Souto de Matos.

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