domingo, 25 de janeiro de 2009

O perímetro da minha serra…







Para alcançar a profundidade e importância do detalhe, devemos de quando-em-quando saber distanciarmo-nos um pouco do nosso objecto de referência e de reverência, observando-o, de longe, no seu todo.
Foi o que fiz neste Sábado.
Distanciei-me das particularidades da minha serra, dos seus detalhes que aprendo a reconhecer e, às vezes, a conhecer até quase ao limite do que é e do que representa e, perdi-me, como tantas vezes faço, numa incursão solitária na ânsia de saber um pouco mais, de lhe entender o passado duro e o futuro mais incerto e árduo ainda. De compreender o conflito das pessoas em constante dúvida da razão do seu ser e do seu viver nestas terras que já ninguém quer. Gentes e terras em permanente questionamento se viverão, se existirão por mais uns quantos anos, por mais um que seja, até definitivamente desaparecerem sem que ninguém se aperceba porque é que simplesmente existiram… recordadas porventura, tão e somente, por terem feito parte de um mapa da interioridade deste país que é o nosso.

Procurei a minha serra, contornando-a por fora, medindo-lhe o perímetro com o meu olhar… não a perdendo de vista… tomando a jeito a sinuosidade do rio que lhe faz fronteira a sul…
Chovera a noite toda, deixando-me em sono sobressaltado na ideia de não poder cumprir o que determinara… Porém, amanheceu o dia, soalheiro quanto baste, não me permitindo deixar de viver o destino que previamente determinara.
Até ao Cabril, apenas cumpri os quilómetros de estrada, tentando espaventar o sono da noite mal-dormida… o olhar ainda turvo em função mínima de se manter atento à estrada.
Chego ainda cedo à grande represa feita pelos homens que estanca o rio e o divide entre concelhos e distritos. A perplexa constatação do baixo nível da água a contrariar os dilúvios das últimas semanas e a deixar as margens descarnadas e sem beleza. Prefiro fixar o meu olhar no outro lado, onde o Zêzere ainda corre lá bem abaixo, lá bem ao fundo, saltitando entre margens próximas.
Subo uma vez mais a Nossa Senhora da Confiança, local privilegiado para um olhar demorado sobre a albufeira. Tudo o que a minha vista alcança abrange a serra. Esta, espraia-se em vales e ergue-se em pequenos e modelados píncaros… num sobe e desce a fazer-me imaginar a espinha dorsal de algum colosso pré-histórico….
O vento gélido espanta-me o olhar e resguardo-me junto à Capela, observando a fé dos homens simples transformada em ermida de cimo de monte.


Passo, sem parar, pelos medronheiros que, em outros tempos mais estivais, me atiçaram os sentidos com o seu aroma, a sua cor, o seu paladar intenso. Agora, os galhos hibernam ainda e resguardam-se do tempo frio. Apenas o cabrito que saltita afoito na erva apetitosa me solta vã tentativa de comunicação.


Pedrógão Pequeno é logo ali à frente. Encantam-me as suas ruas ladeadas com o casario bem proporcionado, uma igreja e um adro preservados, um conjunto de casas solarengas abandonadas mas que me provocam evocações às histórias do romantismo clássico… ando por aqui e por ali, colho imagens como se colhesse um ramo de silvestres flores e aproveito o dia para me encher de sol e de ânimo e da alma (quiçá meio-assombrada!) destas paragens.

O caminho calcetado e recortado pelos muretes reconstruídos entre a vila e a ponte filipina surpreendem-me mas não me deixam saudades… no ziguezaguear da estradita que conduz até à margem do rio, deparo-me com derrocada de pedras e árvore que me obrigam à aventura de recuar com a viatura às avessas nesses contornos de curvas e contracurvas e a frustração de não alcançar a água e a velha ponte.
Depois da perícia, regresso à proveniência.

Não sei para onde siga… lanço convite a amigos que moram por estas bandas, para partilhar o almoço frugal que trouxe comigo. Não será desta, porém.

Ao cimo da terra opto por seguir a estrada que o meu mapa me indica como contornando o rio. Meto na cabeça que comerei a sanduíche olhando o rio de perto. Por isso, viro para o lado esquerdo e sigo.

Não por mais de dois ou três quilómetros… um olival chama por mim… olho para o lado e sinto-o a seduzir-me com o sol a resplandecer nas folhas espetadas, o som de um riacho a fluir por ali… descubro cogumelos e árvores com bagos de que não sei o nome.

Passam carros que buzinam… sorrio com a ideia das pessoas estranharem alguém andar por ali, a pé, empunhando uma máquina e fotografando algo que elas próprias se desabituaram de olhar e de ver.
Sigo caminho, apesar da hora de almoço já ter passado há algum tempo, insisto no propósito da água ao fundo da minha paisagem.
Em Madeirã, surpreendo-me com o cuidado e esmero dos espaços públicos da povoação, com a sua dimensão, apesar de perdida assim no meio do centro do país.

Falo com as pessoas da terra “como chego ao rio?” e estas solícitas a quererem levar-me lá “o seu carro passa, menina, mas se está com medo eu levo-a lá na pick-up da junta”, “vá à confiança que ele é o presidente”, dizem as velhotas sentadas à lareira no café enquanto argumentam que gostam muito de Mozart e de Beethoven por conta de um concerto de uma sinfónica que toca o My Way de Sinatra ou de Aznavour , não sei bem, num programa de televisão… agradeço as informações, afirmo que não tenho medo se me afiançam que o percurso está em boas condições e avanço no propósito das águas do rio e do almoço que tarda.
A confiança releva-se acertada e consigo uma ida-permanência-e-vinda sem sobressaltos que não o contorno sinuoso e o brilho do rio nos meus olhos. Fico feliz com esta imagem que perdura até alcançar a seguinte que me extasia…

A estrada contorna o monte e eu perscruto no meu horizonte, em todo o seu comprimento e volume, o esplendor da minha serra no seu todo. Não fora a névoa e eu alcançaria ainda mais longe que o meu próprio olhar.

São bonitas de se ver estas terras que formam o concelho de Oleiros, com socalcos da erosão dos ventos e arbustos rasteiros de tojo e urze (ou já resultado também da erosão causada por desvastes cíclicos de incêndios?). Um pouco por todo o lado, na crista dos montes, os moinhos de vento do século vinte e um desafiam as alturas e recolhem em si a energia que flui tão generosamente com o vento. Alcanço o Alto do Cavalo. Seguramente é a primeira vez que passo por aqui e estranho que assim seja. No fim do caminho ainda a indecisão de qual o percurso… à beira da estrada um rebanho de ovelhas pasta calmamente sob o último raio de sol da tarde.

Opto por ir até à vila sede-de-concelho que nunca visitei… É um burgo tranquilo, que não tem ao primeiro olhar grandes pontos que me atraiam, que não essa simplicidade de terra de interior que vive com o que tem e como pode.

A igreja chama por mim e encontro um templo de exterior simples mas acolhedor e com um interior fantástico e perfeitamente recuperado. Pedindo desculpa pelo quase ensurdecedor som do flash da minha máquina a uma senhora recolhida na sua oração, acabo por conhecer a história recente da igreja… “sabe, menina (sorrio mais e uma vez por este ‘menina’ que por vezes me concedem e que docemente me toca no íntimo cada vez que o proferem), a igreja ardeu em 2003” afirma Dona Aura num tom sussurrado para não importunar o Altíssimo. E continua “lá fora, haviam três frentes de incêndios que ameaçavam a vila de Oleiros… aqueles quintais, ali à frente, arderam todos… a árvore centenária que lá está fora, não sei se viu (afirmei-lhe que sim), a árvore com o calor incendiou-se sozinha e pegou fogo ao altar”. Continuo, afirmando que pensara que tinha sido obra de vândalos e lá vou ouvindo a história em tom de segredo e cumplicidade “… o senhor padre ficou muito afectado… mas agora o altar foi todo recuperado… 60.000 contos, menina. Em contos! Não em euros.” “Foi uma desgraça para a igreja e foi uma desgraça lá fora para o povo. Ardeu tudo! Só não ardemos nós!”…

Admiro cuidadosamente o templo e fico feliz por o registar na minha memória. Lá fora, o sino badala as 16 horas em quatro pancadas certeiras em contraposição com os ponteiros que a cada lado da torre ora assinalam as dezasseis e dez ora as dezasseis e quinze… realmente o tempo é sempre algo muito relativo!

Neste deambular sem hora nem caminho marcados, duvido mais uma vez de qual o trajecto a seguir… no café no centro da vila, o dono -senhor que de tão baixinho me faz sentir quase uma figura de Adamastor- admira-se de eu procurar locais para visitar “por aqui não há nada que se veja. Se já foi à igreja, então já viu tudo!”. Não tendo como retrucar ou contrapor ouso perguntar já sabendo de antemão a resposta “E então, para seguir para a Pampilhosa da Serra, acha que vou por Janeiro de Baixo ou por Álvaro?”… “Jesus!!! por Janeiro de Baixo???!!!”.
Bem, perante tanta veemência sigo mesmo por Álvaro, não tanto por não considerar o outro trajecto mais aliciante mas por conta do pouco dia e da muita vontade ainda de ver o rio com luz.

O dia ainda me reserva a povoação de Álvaro. Não me arrependo… a aldeia prolonga-se em espinha numa crista semi-curvada do monte… começa num alto, alonga-se em linha arrendonda para se erguer de novo na outra ponta… é uma povoação encantadora, com casas recuperadas ora pintadas de branco ora cobertas de xisto.
Saio junto ao parque de estacionamento para a contemplar neste fim de tarde… mais uma vez sou interpelada por uma senhora já de certa idade “isto é tão feio! Vai tirar fotos, menina?” e continua perante o meu assentimento “se eu fosse nova, abalava! Isto agora são só velhos! Não há nada!”. Ela a dizer que a aldeia é feia e eu a achá-la tão bonita. “Então e o nome da ribeira ali em baixo?” “Ah! O nome da Ribeira? Não sei!”. A viver toda a vida junto à ribeira sem lhe saber o nome e não fora eu perguntar e o João “deixe que eu pergunto ao João (e em tom de confidência) um ‘moço’ da minha geração que me arrastava a asa”, responder que era a Ribeira de Alvelos e tamanho enigma ficaria para desvendar mais tarde com recurso às novas tecnologias do Google, que põe cada canto do mundo no mapa mesmo que às vezes nem os próprios cantos saibam que existem e têm um nome. Deixo Álvaro com pena de não me poder perder por aqui. É quase noite, ainda contemplo o Zêzere aos pés do povoado.
Mais uma vez olho e sinto a minha serra que surge como altaneiro santuário num crepúsculo de contornos suaves…
Sigo caminho por estradas do concelho da Pampilhosa da Serra, um pouco já a sentir no coração e no pensamento o peso da solidão excessiva e guardo em mim o dia.
Aprendo a importância de olhar o ‘longe’ como forma de entendimento do ‘perto’.

4 comentários:

  1. Um Verdadeiro Serviço Público!. Penso que deves ponderar seriamente publicares um livro sobre o interior de Portugal (enquanto ainda existe). Mostras uma realidade histórica contemporânea que em breve desaparecerá, quando existirem apenas meia dúzia de cidades à beira mar. As políticas defendidas nos últimos anos levam à desertificação. Pelo menos ficaríamos com um óptimo registo, como tu sabes fazer. Os vindouros agradeceriam. PARABÉNS!!!

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  2. Amiga,
    Obrigada por me terres levado contigo a passear. Com a tua ajuda o meu fim-de-semana em casa abrigada da chuva, transformou-se num passeio pela serra, pela natureza na companhia da minha amiga.
    Melhor só mesmo estando lá para cheirar a natureza molhada e saborear o almoço frugal que certamente daria para duas.

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  3. Não estava perto Amiga mas lá longe na grande cidade, onde tudo e todos dizem viver e onde nunca se ouvirá "menina". Obrigado pelo fim de semana que me deste com o teu passeio...beijo grande

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  4. FANTASTICO!Parece que também estive lá.. Obrigada por esta viagem :)

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Todos os textos e imagens são de autoria de Ana Souto de Matos.

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