Não sou uma pessoa que valorize os acontecimentos pelas datas, exceptuando os aniversários de nascimento em que a aparente trivialidade do“feliz aniversário” se assume como apenas uma forma de dizer aos amigos ou à família “lembrei-me de ti!” ou “gosto de ti!” por outras palavras.
Para além disto, as datas passam-me todas habitualmente ao lado.
Talvez a maior ilustração seja este exemplo. A minha avó Glória era para mim uma amiga por inteiro. Com 92 anos e ainda arrancava dela sorrisos de cumplicidade e rasgos de total amor e compreensão. Tudo o que eu fazia, era perfeito a seus olhos. Faleceu, sorrindo, feliz por estar à minha beira (dava-lhe eu o jantar)... não me recordo em que dia, às vezes nem sequer o mês. É sempre a minha mãe que insiste na data. A minha avó para mim está viva e surge-me nos momentos mais inesperados... quando passo na auto-estrada junto a Cacia, ali para os lados de Albergaria-a-Velha e o terrível odor da celulose me invade as narinas de rompante. Já se riram várias vezes de mim: - Então o mau cheiro faz-te lembrar a tua avó? questionam. A verdade é que a minha avó sempre viveu numa terra que soube sobreviver com esse odor, desde que nos finais dos anos cinquenta a fábrica se instalou nas cercanias. Quando o vento estava de feição (o que neste caso soa até a contrasenso), o cheiro invadia os campos, as casas, as pessoas. Por isso, aquele cheiro recorda-me a terra da minha avó, o quintal da minha avó, a casa da minha avó e a minha própria avó. E quando passo na A1 com vento de feição, lacrimejo sempre um pouco na recordação do seu amor e ela surge-me com aquele olhar simultaneamente trocista e sobranceiro que a caracterizava e que por vezes pressinto em mim. Outras vezes vejo-a no jantar de Natal, assim à testeira da mesa a fazer as honras da casa e mudas considerações sobre todos e olho-a percebendo, exactamente, o que ela está a pensar...
é mais ou menos desta maneira que eu me recordo das pessoas que amei, que amo e que, desse modo, permanecem vivas em mim. O meu amor mantém-nas vivas. Tenho uma agenda onde aponto os principais compromissos mas é frequente eu perder-me no meio da semana ou do mês e não saber exactamente “a quantas ando!” –O quê já estamos no fim do mês? ou –Julguei que era na próxima semana! são frases quase habituais em mim. Às vezes, a minha mãe diz-me: Olha foi neste dia que aconteceu isto ou aquilo e eu, perplexa, penso –É pá, já passou tanto tempo!; ou então –Foi nesta altura, mesmo? Tens a certeza, não estás enganada? Para mim os acontecimentos valem por si e apenas os associo ao facto de me terem marcado por algo de bom ou por algo de mau, por estar calor nesse dia ou então um frio gélido, pela partilha de momentos ou situações com alguém ou ainda porque os associo a um sabor, a um objecto, a um cheiro, a um sentido, a uma paisagem, a um sentimento determinado. É mais ou menos assim que assinalo as efemérides... sem data marcada, mas com lugar cativo pelo seu simbolismo. Todo este rodopiar em torno do assunto assim como que para amornar os sentidos e me preparar para o que desejo efectivamente expressar.
Enfim, já deu para perceber que não sou uma mulher que me recorde de datas...
é mais ou menos desta maneira que eu me recordo das pessoas que amei, que amo e que, desse modo, permanecem vivas em mim. O meu amor mantém-nas vivas. Tenho uma agenda onde aponto os principais compromissos mas é frequente eu perder-me no meio da semana ou do mês e não saber exactamente “a quantas ando!” –O quê já estamos no fim do mês? ou –Julguei que era na próxima semana! são frases quase habituais em mim. Às vezes, a minha mãe diz-me: Olha foi neste dia que aconteceu isto ou aquilo e eu, perplexa, penso –É pá, já passou tanto tempo!; ou então –Foi nesta altura, mesmo? Tens a certeza, não estás enganada? Para mim os acontecimentos valem por si e apenas os associo ao facto de me terem marcado por algo de bom ou por algo de mau, por estar calor nesse dia ou então um frio gélido, pela partilha de momentos ou situações com alguém ou ainda porque os associo a um sabor, a um objecto, a um cheiro, a um sentido, a uma paisagem, a um sentimento determinado. É mais ou menos assim que assinalo as efemérides... sem data marcada, mas com lugar cativo pelo seu simbolismo. Todo este rodopiar em torno do assunto assim como que para amornar os sentidos e me preparar para o que desejo efectivamente expressar.
Enfim, já deu para perceber que não sou uma mulher que me recorde de datas...
...porém, esta data! Este dia! insinua-se desde há um ano em mim, assim como numa marcação cerrada do compasso de tempo, numa contagem descrescente ou crescente consoante a perspectiva.
quando lhe recordo a voz profunda e pausada a falar-me das ideias e dos projectos com seguras e enleadas doses de lucidez e marginalidade...
quando me recordo do seu ar de menino travesso e irrequieto apesar da compostura aparente, a deixar-me perceber no seu olhar a promessa de mil sonhos e aventuras...
quando relembro o seu sorriso guloso perante os quase pecaminosos manjares da minha mãe... ou o seu ar de quem sabe-sempre-tudo-sobre-tudo nas opiniões que formulava e que por vezes tão irritada me deixavam porventura pela minha própria ignorância perante tão extrema sapiência. De quando em vez, afirmava até com aquele ar de doutrinal convicção que era um ser perfeito só para me arreliar e ver torcer e contorcer perante a enormidade de tal pretensão... e ria-se, ria-se.
Outras vezes não se ria... ficava com um ar sisudo de quem cria em torno de si uma auréloa de protecção do tipo “não-me-toquem-não-me-falem-e-deixem-me-em-paz”. Mas mesmo quando em ebulição, em transe, em delírio ou em simples apatia –estados habituais e a ele naturalmente intrínsecos-, o olhar mantinha-se inalterado na sua forma de ver e sentir as coisas… um olhar de pássaro, cheio de poesia, voando sobre a realidade dos homens.Passou um ano... às vezes parece que não passou tempo quase nenhum e outras vezes parece que de permeio se passaram múltiplas vidas...
O Francisco marcava todos os que consigo privavam e por isso mesmo marcou para sempre muitas coisas, muitos momentos, muitas pessoas.
Marcou uma casa, uma terra, uma história. E, de uma certa forma passou a ser ele próprio parte da história daquela casa e daquela terra.
Marcou pessoas de outras paragens e que por todo o mundo se recordam de si como marcos nas suas vidas.
Marcou colegas, marcou amigos que se recordam da sua escrita, do seu conhecimento profundo sobre todas as coisas e da sua opinião vincada.
Marcou-me a mim e dessa forma vive no sorriso que lhe recordo, no som da voz, nos ideais que partilhámos. A ele lhe devo ter aprendido a deixar crescer o mundo em mim, aquele que existe na minha cabeça, no meu pensamento, no meu coração... ou a moldar a forma do meu olhar sobre as pessoas e os seus quotidianos... ou ainda a apercerber-me do conspirar da borboleta no seu breve toque na flor, porque simplesmente “me apetece, caramba!”, ouço-lhe a voz a afirmar.Será certo que as pessoas dirão o que dizem habitualmente: -faz um ano que morreu ou que partiu ou que se foi ou que Deus o levou, coitadinho! que estava tão doente e em tão grande sofrimento! Se calhar até lhe mandarão rezar missas pela alma, num acto e ideologia que com a vida aprendeu a abominar. Mas para mim perfaz um ano que não ouço a sua voz, que não sinto o seu incentivo aos meus sonhos mais amplos, aqueles que são mais-além, que não vejo o seu olhar a percorrer o mundo num ápice, que não tenho os seus elogios iguaizinhos aos da minha avó para quem eu era perfeita ou a proferir, convicto dessa verdade, que era eu o seu anjo na terra, que não embarco nas suas historietas do Camilo, da avó-baronesa, das japoneiras, das tertúlias ou das terras da Ribeira.
O Francisco marcava todos os que consigo privavam e por isso mesmo marcou para sempre muitas coisas, muitos momentos, muitas pessoas.
Marcou uma casa, uma terra, uma história. E, de uma certa forma passou a ser ele próprio parte da história daquela casa e daquela terra.
Marcou pessoas de outras paragens e que por todo o mundo se recordam de si como marcos nas suas vidas.
Marcou colegas, marcou amigos que se recordam da sua escrita, do seu conhecimento profundo sobre todas as coisas e da sua opinião vincada.
Marcou-me a mim e dessa forma vive no sorriso que lhe recordo, no som da voz, nos ideais que partilhámos. A ele lhe devo ter aprendido a deixar crescer o mundo em mim, aquele que existe na minha cabeça, no meu pensamento, no meu coração... ou a moldar a forma do meu olhar sobre as pessoas e os seus quotidianos... ou ainda a apercerber-me do conspirar da borboleta no seu breve toque na flor, porque simplesmente “me apetece, caramba!”, ouço-lhe a voz a afirmar.Será certo que as pessoas dirão o que dizem habitualmente: -faz um ano que morreu ou que partiu ou que se foi ou que Deus o levou, coitadinho! que estava tão doente e em tão grande sofrimento! Se calhar até lhe mandarão rezar missas pela alma, num acto e ideologia que com a vida aprendeu a abominar. Mas para mim perfaz um ano que não ouço a sua voz, que não sinto o seu incentivo aos meus sonhos mais amplos, aqueles que são mais-além, que não vejo o seu olhar a percorrer o mundo num ápice, que não tenho os seus elogios iguaizinhos aos da minha avó para quem eu era perfeita ou a proferir, convicto dessa verdade, que era eu o seu anjo na terra, que não embarco nas suas historietas do Camilo, da avó-baronesa, das japoneiras, das tertúlias ou das terras da Ribeira.
Porque quando releio as suas palavras é como se o Francisco estivesse mesmo aqui com toda a sua venerável confiança e com histórias para contar e aventuras para viver quer fossem no meio de uma picada de Cabo Verde ou do Brasil quer mesmo outras tantas vezes vividas no aconchegante sofá da sala de estar, ou não fosse ele Homem do mundo de vida intranquila e desassossegada que mesmo fincando raízes no solo voga sonhador em torno do seu jeito meio etéreo de ser.É estranho, mas sinto e não sinto saudade!
Hoje não relembro os 365 dias que o Francisco não esteve aqui, recordo a sua marca boa em mim e nas pessoas. Assumidamente eterna!
E porque “me apetece, caramba!” partilho convosco que são meus amigos e muitos de vós que foram e são seus amigos também, uma dúzia dos milhares de textos que mais do que escritos tinha na sua cabeça a martelar o futuro livro das palavras ainda não redigidas. Certamente acharia piada a estas minhas divagações e afirmaria: -“como são deliciosas as tuas palavras”… ficando a saboreá-las por dentro, considerando o peso da sua verdade. Depois olhar-vos-ia a todos os que me lêem a falar de si e com um semblante a raiar entre o sério e o travesso lançaria um “bem-haja a todos”.
Fará tudo isto qualquer sentido?
Sei lá… decididamente não me apetece ser lúcida…
- Sinais de Civilização
- Os meus vizinhos já não acreditam em mim!
- Raízes 2- a lenta construção das raízes
- A propósito de brinquedos
- Hoje a lua está cheia
- Sobre tertúlias... variações à volta de filmes de western
- Raízes 1
- Da Catalunha ao Brasil, ementas originais
- De quantos pelos se faz uma barba
- História da minha ida ao futebol
- Notas de uma fugaz passagem pela capital
- Exorcismo para uma morte
- Obrigado Eugénio!
- (Aviso à navegação) Urinóis
- Esquemas de saúde
- Ao meu amigo Joaquim Jorge
- Plenitude
Depois de te ler com atenção, muitas foram as memórias que me vieram à mente. Afinal, sempre amei o exercício de fazer recordar em mim o que sempre recusei esquecer. Também recordo a Avó Glória, o seu andar desajeitado, aquela vivacidade no olhar, a sua voz, o seu cabelo...
ResponderEliminarRecordo também o quintal, as escadarias, a cozinha com a lareira, o corredor com os ovos de avestruz, a varanda da sala de onde se via a procissão, o quarto de teus tios com o colchao deformado e o quarto de teu Avô. Me recordo das conversas dele, das histórias que sempre repetia, dos rebuçados de mentol, do barrete de lã que colocava, dos chamamentos pela tua avó. Me recordo de lhe dar comida, de me sentar à sua beira escutando-o falar da vida como se nunca tivesse saído daquele passado. Me recordo da loja, do pedrado da rua e do cofre. Mas também me recordo de ti, dos aniversários que nunca esquecias, das tuas tartes de amêndoa, dos teus poemas, das tuas inquietudes, das tuas lágrimas, da tua roupa, do teu baptismo, do teu passado...
Abençoados aqueles que não esquecem o passado...aqueles que sorriem quando recordam uma partilha, uma atitude, um amor.
Fica aqui a minha lembrança de um quase nada, comparado com o muito que recordo. Fica aqui um beijo e um até breve, porque sempre será assim, um não querer esquecer, não querer apagar, um querer lembrar...sorrindo.
Parabéns.
ResponderEliminarAdorei como falastes da essência...
Grande abraço.