terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Olhos de pássaro...

Três semanas após, percorro de novo o meu rio…numa extensão maior, da nascente à foz, contornando o seu trajecto sinuoso, montanha abaixo, seguindo-o agreste ou lânguido, represado ou livre até sedutoramente se enlear no Tejo que o acolhe ávido…

É diferente desta feita… o desafio foi lançado assim num rompante e, mesmo sem conhecimento de todo e qualquer detalhe, aceite num ápice … contrariando o jeito habitual de agir, excessivamente controlado, disciplinado, recatado até.


Desta vez é efectivamente diferente… não estou só!!! como quase sempre ocorre na sucessão de passeios em que sou 'apenas-eu-e-a-natureza' numa constante busca e compreensão do meu cerne.Quer seja por não estar só, quer seja por a paisagem envolvente nem sempre se apresentar no seu esplendor, o certo é que acabo por me distrair e apenas me concentrar nas pessoas e na sua própria natureza, tarefa indubitavelmente mais exigente. As pessoas são quais caleidoscópios nas suas múltiplas formas de ser e de estar, de se apresentarem e de se mostrarem aos outros, num baloiçar que, naturalmente, adaptam (ou jogam?) em consonância com cada ambiente. A genuinidade é geralmente resguardada, sabe-se lá bem o porquê…. E resguardado o âmago, o “ser” de cada um, o que lhe confere a sua individualidade, o que o torna único perante os demais. Depois, não interessa ser-se genuíno e verdadeiro, as pessoas controem personagens, fachadas, máscaras quer seja por medo, por defesa, por fanfarronice ou simplesmente por falta de conteúdo… o mimetismo prolifera, o mostrar-se, o parecer-se mais que….

Por isso estar atenta à natureza das pessoas revelou-se empreendimento mais árduo...

Observar como estas se moldam às circunstâncias, como as vivem, como as aproveitam, o que trazem, o que deixam ficar, o que levam, o que sobra!
Distraio-me de mim, com os outros! 

É engraçado tentar perceber os círculos de atracção ou de poder… as danças subtis e menos óbvias dos personagens que compõem a história… como a jovem que mesmo com o namorado a seu lado (convenhamos que algo sensaborão, diria até desenxabido) não se escusa a fazer charme a forças porventura superiores ou o borboletar de homens mais velhos ou com moral assaz mais duvidosa em torno das flores mais atraentes ou ainda a picardia dos mais aventureiros ou as gabarolices de outros tantos pelas façanhas e destrezas do todo-o-terreno.

Torna-se interessante este meu olhar. Porventura, os olhares que recaem sobre mim terão contornos idênticos... sei que estou transparente... sei que sou transparente... tal como a água cristalina que observo de um Zêzere ainda puro...
mas não quero saber...

Há momentos que registo e me enternecem… aprecio casais que não escondem o que sentem perante os outros.


Com o sinuoso percurso, entre solavancos, curvas e reveses, o corpo apesar de achocalhado deixa espaço para a mente se ocupar com quem a rodeia. 


O Zêzere vislumbra-se aqui e acolá a dar mote ao passeio e recordando-me permanentemente desta minha relação íntima e cúmplice com o mundo exterior.

Sentirei pena daqueles que se levantarão no dia seguinte, cansados e doridos destas suas incursões pelas províncias, levando agarrada aos pneus a lama das terras que percorreram para gáudio dos vizinhos gulosos de notícias frescas. Terei pena daqueles que terão de percorrer trajectos infindáveis entre betão e alcatrão esburacado, entre tráfego intenso de ‘pára-arranca’.

Sentirão eles, porventura, pena de nós -dos que cá ficam e vivem- que apesar dos apenas cinco minutos de percurso entre a casa e o trabalho, se debatem diariamente com os “marasmos” e a lassidão do viver no interior?

Questão eterna esta, dualidade presente, entre o ser-se do campo e o ser-se da cidade, numa articulação permanentemente desencontrada e em que os que cá estão mostram o desgaste da luta quotidiana.

Olho em torno de mim. A Primavera ainda não chegou mas pressinto-a nos rebentos das árvores, ainda tenros e frágeis e nas flores silvestres que pontilham os prados… num recanto, a primeira borboleta do ano, alva de cor, foge de mim…

Sinto que as pessoas em meu redor estão ávidas de calor, de luz, de ar, de espaço amplo, de descontracção, de se exibirem até…
Observo-as no seu rodopiar ao sol… nos seus rituais sociais.
Nas suas investidas e evasivas, tento vislumbrar mais para além do que mostram… às vezes, consigo vislumbrar várias pessoas numa só…

Comparo-as à natureza… crio imagens e paralelismos… invento histórias e enredo-me em argumentos… sorrio para dentro e rio-me com os meus próprios disparates.
Sinto-me a flutuar observando a paisagem e quem me rodeia com olhos de pássaro…
Apesar dos meus pensamentos soltos...

não me esqueço que desta vez não estou só, existe uma 'equipa' ...
e é muito boa essa sensação porque, em conjunto...
percorremos as margens do rio… resvalamos… voltamos a ‘navegar’… escorregamos… trepamos… fotografamos… enchemo-nos de lama… desafiamos o equilíbrio… cantarolamos… atolamos… rimos… continuamos a fotografar… paramos para ver –ou não ver- o que se passa… rimos mais… derrapamos… alcançamos chão firme.
tudo recomeça uma e outra vez...
Os dois dias passam e de tanto olhar os outros… esqueço-me de olhar para mim própria…
Às vezes sinto -por breve instantes apenas- que faço parte de algo maior. É, no entanto, uma sensação só minha… sei que para os demais é apenas um momento. Para mim, será o marco, o fim de uma etapa de vida… o reinventar-me e renascer para um novo ciclo…
Baixo as defesas…

foge-me saltitante a disciplina a que me imponho habitualmente… absorvo o sol no rosto e deixo-o entrar para dentro…

aceito o entusiasmo dos outros, partilho-o e sinto-o como meu, porém, sem qualquer expectativa ou pretensão de mais ou de diferente. Pelo menos por agora, basta-me o momento para me encher os sentidos!

Assumo o que sou! Fico alegre! E... sinto-me feliz!

2 comentários:

  1. Os teus olhos, na realidade, é que são tão sagazes quanto os da serpente e tão ternos quanto os do golfinho.
    Tu és o pássaro que voa mais alto e mais longe mas que nos traz os sentimentos que estão tão perto ou mesmo dentro de nós.
    Com o teu olhar, tal condor, que consegue tirar de cada um de nós as sensibilidades mais dúbias e incutir fortes laços de amizade que certamente perdurarão eternamente.

    Beijo enorme,

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  2. Conseguiste fazer-me sentir como se também eu tivesse feito essa viagem... mas não são só os teus olhos de pássaro... são sobretudo as tuas palavras que me fazem viajar pelos caminhos que tu percorres...continua a viajar dessa maneira e a "levar-me" contigo...

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Autoria e Agradecimento

Todos os textos e imagens são de autoria de Ana Souto de Matos.

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