sábado, 11 de abril de 2009

Tempo de Páscoa...

Passo uns dias em Zamora…
afinal uma cidade quase-que-aqui-ao-lado, a uns escassos cento e tal quilómetros da fronteira…



A cidade fervilha com os festejos da Semana Santa… época pela qual anseiam os espanhóis de qualquer província e para o qual se preparam durante todo o ano…
Nestes sete ou oito dias, a cidade pára e vive em torno das festividades.


Mais do que a religiosidade dos actos é o simbolismo dado pelo povo que impera… este, vibra e participa em massa… anseia o bom tempo que permitirá, ou não, que todas as confrarias desfilem…



Os espanhóis de Zamora ataviam-se para a festa… porque apesar do espírito de penitência ou de reflexão da solenidade da Semana Santa, o momento é de festa… E a festa está presente em toda a parte… nos cafés e ‘panaderias’ que se mantêm abertos por toda a noite… nos cheiros adocicados das amêndoas artesanais confeccionadas ali nas barraquitas de rua… nas pessoas que percorrem vezes sem conta as zonas pedonais da Calle de Son Torquato, da Plaza Mayor ou da Catedral ou da Calle de Santa Clara, nos sons estridentes das cornetas e mais surdos e cadenciados dos tambores que nos fazem obrigatoriamente participar, mesmo que não assistamos aos cortejos e que nos entram dia e noite pela casa dentro -todo o tempo- trespassando janelas e paredes. A cidade não dorme nestes dias. E nós também não!

Mas, para além dos festejos da Semana Santa, Zamora é uma cidade encantadora e com um burgo antigo e monumental que percorremos a pé vezes sem conta.

A cidade não nos deixa esquecer a ligação estreita que tem com o nosso país… desde a Praça de Viriato (‘nobre lusitano’) à Fundação Dom Afonso Henriques que preserva no seu seio o simbolismo do Tratado aqui firmado há quase novecentos anos e ao qual é devido a nossa própria nacionalidade, passando pelo Arco de Dona Urraca num dos pontos da muralha do ‘Castillo’ até ao próprio rio, aqui Duero, mais adiante Douro… tudo nos recorda e liga ao nosso país em linha de raia, mesmo aqui ao lado.


As fachadas dos edifícios são cuidadas e passo o tempo de pescoço erguido observando os detalhes das sacadas que me encantam, procurando os ninhos das cegonhas que se instalam sem pudor em todo e qualquer beiral e telhado.



Para estes dias foram programadas dezanove procissões que trespassam o casco antigo da cidade percorrendo as suas ruas em todas as direcções. Os percursos são sempre delineados por ruas diferentes e, a partir de várias igrejas congregam-se e saem milhares de pessoas, na sua qualidade de fiéis (ou figurantes?!) de uma história contada, em cada cortejo, ao estilo de episódio… Recria-se a última semana da vida de Cristo, encadeando os principais momentos em cada procissão.

São inúmeras as Confrarias que participam nestas solenidades. Algumas permitem apenas a adesão de homens, outras só de mulheres e, as crianças mesmo as de mais tenra idade constituem já uma presença natural. É uma tradição que impera nas famílias pertencer a qualquer uma destas congregações, afirmam-me. São tradições profundamente arreigadas que se perdem na árvore genealógica de cada família… os bisavós e avós pertenciam a esta ou aquela confraria, legando esse costume aos seus filhos e netos… é possível encontrar várias gerações de confrades e confreiras participando em conjunto nas procissões. E estas, sucedem-se quase a um ritmo frenético… umas começam às vinte e três horas depois da ‘cena’ tardia que por estas paragens impera, terminando apenas três horas após… outras iniciam-se dentro da madrugada, lá pelas cinco da manhã… outras ocorrem a meio da manhã, outras ainda a meio ou no fim da tarde… a cadência é quase alucinante e, dia e noite, desfilam confrades aos milhares, deixando-me boquiaberta perante tanto povo crente.


Os trajes impressionam pela severidade e toque de secretismo e, apesar de me aludirem a um certo ar de Ku Klux Klan ou até –e teria certamente mais lógica- à época medieval da Inquisição, a verdade é que permitindo o anonimato de quem os enverga, apenas simbolizam a igualdade de todos os homens entre si e a sua igualdade perante Deus. Os bicos dos capotes que ocultam o rosto apontam ao céu, num significado de procura incessante da verticalidade, da comunhão total com o Altíssimo. Explicações dadas pelos naturais que com esta história nascem e crescem e que a têm entranhada nas suas vidas. Mas é extremamente estranha a sensação de podermos ser observados sem nos apercebermos de quem o faz e só conseguirmos descortinar os olhos de quem desfila. Estes, tornam-se incisivos e audazes, por vezes.

Qualquer local serve para momentos de introspecção e a par de actos mais pagãos que envolvem muitos e diversificados néctares, é possível encontrar quem reflicta sobre o significado da sua participação.

As procissões nocturnas são quase mágicas. Nalgumas impera o silêncio total e a luz das velas confere ao quadro uma dimensão quase feérica. É algo assustador, porém muito belo!


Os andores são uma constante nos cortejos. Enormes, sugerindo peso excessivo e porventura sobre-humano. Assim o imagino quando apenas vislumbro dúzias de pés calçados ou descalços sob a capa que encobre os corpos dos homens que os suportam. É uma verdadeira honra, transportar o andor, afirmam-me mais uma vez!

Todavia, ir a Zamora não teve como fundamento um simples passeio turístico.

Representou muito mais do que observar uma mera manifestação religiosa e popular, diferente e extraordinária, com contornos de espectáculo bem encenado. 

Representou uma reaproximação afectiva! Um aconchego a uma amiga de sempre, daquelas que fazem parte integrante de toda uma vida e que mesmo não estando, o são! 


Estar em Zamora representou um momento de reforçar laços lassos, soltos pela crueza do tempo e da vida e de relembrar que há sentimentos que são eternos.


Sem comentários:

Enviar um comentário

Autoria e Agradecimento

Todos os textos e imagens são de autoria de Ana Souto de Matos.

Todos os direitos estão reservados.

São excepção as fotografias do Feto Real e do Cardo que foram cedidas pelo João Viola e 2 imagens captadas na Net sem identificação de autor.