É só ter o valor certo para pagar e asseguram-se duas horas de Sonho, pensado e executado profissionalmente, ao milímetro do pormenor, por quem sabe construir imaginários de encantamento e luz…
Apesar de o Sonho ser pago –a peso quase de ouro!- sinto que vale a pena esquecer por uns cento e vinte minutos que a vida lá fora é escassa…
Viver um serão no ‘Cirque du Soleil’ é como entrar dentro do próprio sol, em algo de grandioso, de feérico. É como entrar numa enorme cabeça dimensionada ao 'plateau'… onde faunos, duendes, fadas, monstros do fundo dos mares, personagens mitológicas, outras caricaturadas do nosso quotidiano, se misturam e se interagem e se transformam num ritmo frenético e criam um espectáculo de som, de luz, de imagem, de teatro, de artes de circo elevadas à sua expressão máxima de realização… um espectáculo onde tudo se complementa e nos transmite cor, encantamento, magia, esquecimento, alegria.
E, de repente, esqueço-me da vida de todos-os-dias e abro a boca de espanto e sinto-me de novo menina pequena, cheia de ideias, com o pensamento repleto de coisas doces, de coisas boas, daquelas que aconchegam e acalentam… e perco-me, completamente, na floresta mágica de bambus, com as luzes dos pirilampos a confundir-me o olhar, as imagens tétricas de seres reinventados que misturam o real com a imaginação e nos transformam a nós, espectadores ávidos de sonhos, em personagens da história que se desenrola em palco… e a música, que é extremamente envolvente, cantada ao vivo, permite sentir que é ali –naquele preciso momento, naquele instante!- que o Sonho decorre e flui… assim como fluem pelo ar seres sem asas que permitem que o seu adejar quase nos toque os cabelos… seres que voam sobre nós, deixando que a brisa do seu rasto nos entre pelos olhos dentro, também ela, mágica. Varekai, a palavra dos povos nómadas para definir ‘em qualquer lugar’. E é aí, em qualquer lugar, que existe e encontramos o Sonho, que tanto pode ser absurdo como absolutamente extraordinário, minúsculo ou grandioso, transcendente a tudo ou apenas inerente a nós próprios…
A meu lado, a minha criança está em perfeita sintonia comigo e com o Sonho. Estamos no sítio certo e partilhamos o momento certo. Só com ela faz sentido este momento.
E por momentos, a sensação de que vivo numa outra dimensão. Esqueço-me de ovacionar… "interiorizo-me" nestes seres quase etéreos que se espraiam pelo espaço. Por todo o espaço! Porque todos os elementos se completam e se interligam, a música enche os sentidos, a luz ou a escuridão enchem os sentidos e a própria história que nos vai sendo contada nos enche os sentidos… uma história de Amor… de um Ícaro que percorrendo o céu do seu próprio Sonho, perde as asas mas alcança o sentimento máximo do amor correspondido.
Pagamos por duas horas de Sonho… espectáculos repletos –esgotados- a justificar a ideia de que o mundo, as pessoas, precisam de Sonho para viver, mas já não sabem dar vida aos seus próprios sonhos.
Vale a pena. Vale o dinheiro. Nada como entregar a profissionais, competências que já não dominamos.
Não posso tirar fotografias ao Sonho… trago-O comprimido em caixinha digital para tentar reviver e partilhar o momento… sei, porém, que nada será igual. O momento já passou.
No dia seguinte, passo pelo recinto do circo, o Grand Chapiteau… desmontam o Sonho a grande velocidade. Dezenas de contentores se perfilam no espaço para O encaixotar e levar para outras paragens distantes onde haverá outros que pagarão para O sentir por duas horas. Foram realizados os últimos espectáculos em Lisboa. Chove intensamente… desapareceu a imagem do saltimbanco, do fauno, dos peixes coloridos, dos duendes e da fada de olhos cintilantes… não há música, nem cor, nem magia… só o cinzento do céu, o branco da tenda gigante e a ponte ao fundo que entre a névoa parece uma miragem…
Na minha cabeça persiste, porém, a imagem clara quase imberbe, de um Ícaro feliz.
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